domingo, 5 de janeiro de 2025

SOBRE A ILUSÃO DO SER


    
                O ego e a identificação com o Ser ilusório é a fonte de toda a infelicidade humana. Se considerarmos que somos o nosso nome, a nossa profissão, o que temos, como parecemos perceberemos rapidamente de onde vem o nosso sentimento de constante insatisfação.

            O Ser, portanto, não é mais que uma entidade ilusória e limitante criada por pensamentos, em vez de ter o papel puramente funcional para navegar neste mundo, agarramo-nos às ideias do que somos, assim sendo evidentemente que ficamos ofendidos, tristes, revoltados, amados, ignorados entre tantos outros sentimentos e emoções, o ego necessita disso para se proteger e nos dar o sentimento de separação com o resto da experiência, tornamo-nos o centro da experiência, o centro do mundo.

            Mas nem todos os estados do ser são ilusórios, o que devemos ter em conta é a confusão mental que é os nossos pensamentos e como eles surgem, vemos com frequência que estamos perdidos em pensamentos e completamente distraídos do presente, esta condição de não estar ciente do pensamento é que nos retira a paz do momento presente, através da meditação ou mindfulness (atenção plena) temos tendência então com âncora ou não na respiração perceber os pensamentos e identifica-los como tal e deixar ir, percebemos depois virá um seguinte que não sabemos de todo qual e é esse o valor da meditação, não é acrescentar nada, não é transcender nada, é apenas acordar ou entrar em contacto com o que já existe.

            Se não há ser não há nada para transcender, e o nosso tão querido livre arbítrio que o ego gosta tanto passa também a ilusão, embora tenhamos poder de escolher essa escolha não é de todo livre, para o ser teríamos inevitavelmente saber qual o próximo pensamento e ter o resultado final de todas as possibilidades, o que escolhemos e decidimos advém de fatores externos, fisiológicos, ambientais e mentais, são ações e reações entre toda a experiência que engloba tudo na realidade.

            Não somos fins, somos processos por isso algumas funções do ser são úteis na relação com os outros, o nosso nome por exemplo é um conjunto de letras que faz um determinado som e serve para isso mesmo, para interações com outros e com o ambiente em si. É como uma personagem num filme, o ator não é a personagem, a personagem só serve para o filme.

            Então o que é isto de que existe sempre sem nunca ser ilusão?

            Chama-se consciência e ninguém nem a ciência nem muito menos a religião sabe o que é e de onde vem e como é formada, a ciência porque o seu estudo ainda não resultou em nenhuma evidência que seja irrefutável, a religião porque todas elas são diferentes com diferentes princípios e cada uma acha que é mais real que a outra que não pode ser o pilar fundamental, ou em outras palavras, deus ou deuses e deusas, esses conceitos estão eles mesmo incluídos na experiência da consciência.

            Se nos sentarmos e ficarmos em contemplação do momento presente, focados na experiência de cor, luz e sombra que é o nosso campo visual e de repente tentarmos observar quem está a observar o que que encontramos?

            Se a sua resposta foi, “não dá para encontrar”, estará no caminho certo, como poderemos encontrar o que não existe?

            A ideia que estamos dentro da cabeça e por detrás das pálpebras dos nossos olhos dissolve-se um pouco quando imaginamos por exemplo que o nosso cérebro estava no lugar do fígado, os processos poderiam ser iguais no corpo humano e se fossem chegaríamos à conclusão que o nosso ser estava no fígado. Percebem? Temos um cérebro é certo, mas também temos um estômago e não estamos constantemente cientes que o temos, só quando cumpre a sua função.

            Assim o cérebro tem uma função, e a função não é dar-nos identificação, é tipo um computador, e a consciência é o software.

            Nem mesmo o reflexo da face que vemos num espelho é real e certamente não somos nós, como nunca me vi com os meus olhos não sei se não é apenas uma ilusão, a superfície refletiva do espelho não nos diz nada sobre o espelho em si, vemos uma bom exemplo da ilusão do ser mesmo num reflexo quando por exemplo um animal que se vê ao espelho julga que está a olhar para outro animal diferente no reflexo, apenas os humanos têm esta capacidade de se iludir e identificar com o ego, um gato não se identifica como gato, logo o reflexo só pode ser outro gato ou seu conceito de animal da sua espécie que não sabemos porque cada ser tem uma noção de realidade diferente.

            O mesmo certamente acontecerá se mostrarmos a alguém que nunca se olhou ao espelho o seu reflexo num, certamente essa pessoa não se reconhecerá no reflexo.

            Assim como a superfície do espelho não nos diz nada sobre o espelho em si, isto é, de que é constituído, átomos e moléculas e etc., também nós somos como um espelho onde a superfície que reflete são a ilusão do ser, é onde ficam espelhadas as emoções, sentimentos e pensamentos, mas nada disto nos diz nada sobre o todo, somos espelhos, refletindo ilusões.

            Uma experiência que se pode fazer é olhar para um vidro que seja bastante refletor, veremos que a maioria das vezes nem reparamos que estamos refletidos nele, estamos a olhar para lá do vidro.

            A consciência está sempre aberta e mesmo quando em meditação fechamos os olhos veremos que o nosso campo visual não desaparece, aparecem sempre algumas sombras, mudanças de luminosidade, objetos diversos, ora se estamos cientes disso com os olhos fechados, como poderemos ser quem está por detrás das pálpebras?

            Somos nada e somos tudo ao mesmo tempo, é um paradoxo bonito que faz todo o sentido.

            Ora isto não retira como é evidentemente importância a pensamentos pois eles são necessários, não são é todos necessários e muito menos servem como identificadores,

            A mente está constantemente a tentar resolver problemas que ela mesma cria, problemas que nem existem, parece que somos viciados em resolver coisas e a colocar rótulos em tudo.

            Uma árvore não é mais que um conceito, se a nossa língua não for portuguesa árvore nem existe, e ao vermos uma notamos logo que aplicamos logo mil uns adjetivos à mesma.

            Não existe dualidade observador/objeto, tudo é consciência não dualista se estivermos conscientes do presente, ou da nossa perceção humana de presente pois nada no universo acontece ao mesmo tempo logo o presente em si nem existe, apenas existe porque só percecionamos até segundos na nossa experiência humana, mas se subdividirmos o tempo mais torna-se claro que o tempo não para logo nada existe em simultâneo.

            Vou deixar de lado a questão da mecânica quântica pois para já não sou especialista e depois parece que ela é usada agora para tudo que é espiritualidade e para provas de existência de deus, só porque parece rentável, a verdade é que ninguém está de acordo com nada nesse campo e a teoria que a consciência quebra a onda quântica já foi desmistificada como criadora da realidade, pois se a consciência não está em nós como podemos colapsar o quer que seja, teria de haver outra consciência a colapsar a nossa e por aí adiante ad internam.

            Se consideramos o presente à escala humana entendemos facilmente que nada existe além deste momento e existe sem interferência nossa, apenas é, memórias do passado são pensamentos presentes, objetivos futuros são pensamentos presentes, só existimos no presente logo tudo é presente o resto é ilusão.

            Logo não somos o centro de nada, as coisas acontecem sem nossa interferência, vejamos um exemplo, se nos sentarmos à beira de uma estrada movimentada perceberemos que quem passa de carro passa inconsciente que sequer estamos ali, estarmos ali ou não para eles é indiferente, logo não somos o centro de nada, para isso teriam de toda a gente e todas as coisas estarem sempre cientes que existimos, não somos apenas uma parte da experiência como um todo, da experiência da consciência.

            Até o contacto ocular entre estranhos dura apenas momentos logo somos apenas isso, momentos céleres no mundo de alguém. Em que nos é mais próximo esse efeito aumenta, mas também não estamos sempre no seu campo de visão, se o seu pensamento estiver focado numa tarefa nem sequer parece existirmos.

            É científico que o cérebro não consegue fazer mais de duas coisas bem, sendo que uma delas é pensar as outras são o que fazemos diariamente e se tentarmos pensar e fazer duas coisas diferentes ao mesmo tempo veremos que só uma fica mais bem feita.

            Meditação e mindfulness não é ausência de pensamentos, isso é impossível, aliás quem faz e nota que está a pensar é porque está a fazer bem, se ficar perdido em pensamentos como o pensamento de “estou a pensar logo estou a fazer isto mal” está adormecido.

            Andar acordado perdido em pensamentos é como estar a dormir e a sonhar, apenas os sonhos são pensamentos um bocado mais nítidos enquanto que acordados os pensamentos são mais confusos. Nisto não incluo os chamados sonhos lúcidos por isso são experiências diferentes que não têm a ver com o assunto.

            Se estivermos presentes em todos os momentos veremos que o sofrimento se atenua, as expetativas desaparecem e sabemos bem como as expetativas nos fazem sofrer, ao realizarmos uma ação devemos largar a expetativa de qualquer resultado pois nada está sob nosso controlo logo temos de entregar o resultado e será o que será.

            Entreguemo-nos ao sentimento de impermanência e isto implica aceitar que um dia vamos morrer e não sabemos o que há além disso. Tudo é impermanente, isso devia-nos dar uma ideia que os pensamentos são mesmo coisas ilusórias que o ego gosta tanto.

            Somos nada e tudo ao mesmo tempo.

 Bruno Carvalho

Jan 2025

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