quarta-feira, 12 de março de 2025

GAIA

             


       Na intimidade do meu ser rejeitei o primeiro sangue, a primeira luz da aurora, mergulhei a cabeça de novo na almofada e na serenidade cálida do sono.

Enredado nos sonhos obscuros da desesperança, medo e orgulho vãos, continuei alheio ao passar dos minutos, certo da incerteza de um novo dia, optei pela escuridão para destruir a noite.

        Enquanto vegetava no limbo verguei-me à quebra de confiança, o sangue derramado sobre a terra ocultava desgraças, presságios de fogo escritos nos pergaminhos do tempo.

         Gaia permanecia ofegante nos meus braços fartos, aquele amor inquieto espalhava-se pelas estrelas, aquele desejo eterno navegava em sonhos lunares, flores envenenadas espalhavam pétalas murchas no marmóreo chão daquele lugar perdido.

         Agora as vozes furiosas das minhas memórias obscuras ouviam-se na serenidade noturna, rasgavam o silêncio, o sono perfeito dos justos, a humanidade entorpecida por verdades omissas, a grande mentira adocicada pela loucura do poder.

         A lava engolia o vale, o cheiro a enxofre ardia-me nos pulmões, do solo brotavam visões atrozes, erros enterrados em milénios de descuidados atos, tudo aquilo demonstrava-me que a morte era o menor dos castigos para quem se julga acima da incorruptível fraqueza humana, a egoísta arrogância da humanidade, o erro de me classificar como ser superior, essa superioridade, porém, era a maior das minhas fraquezas.

         Gaia contorceu-se debaixo dos meus braços abertos, vomitou frondosas paisagens, um mar verde, a terra explodia em suaves aromas, amores perdidos, agora reencontrados, nos olhos do lobo refletia-se a perdição.

         Na segurança do meu efémero limbo vi a noite fragmentar-se em pedaços luminosos, vi a condição humana ser arrastada pela justiça selvagem da natureza.

         Acordei, despojado da minha impunidade, ciente que o primeiro sangue derramado fora vingado e que a primeira luz havia subjugado a escuridão do orgulho humano.

         Amarrado à árvore da vida derramei sementes no solo recém-criado, um novo clamor nascido do estertor da minha guerra interna.

        O novo pacificador havia nascido.

 

Bruno Carvalho

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