quarta-feira, 5 de março de 2025

MIL E UM MEDOS

              


 

                Somos todos uns adictos a sofrimento.

                Pode parecer uma afirmação meio radical e agressiva, mas exploremos este assunto.

            O nosso nível de apego a coisas e momentos, a objetos dentro da nossa consciência é infinito, apegamo-nos aos picos, altos ou baixos da nossa vida, sendo os baixos maus e a estes damos uma importância extrema, aos picos altos e bons porque neste momento são apenas memórias passadas e como as lembramos no presente tornam-se más também porque são momentos que tivemos que agora não temos.

            O nosso ego e a voz interior regem a nossa vida, somos como autómatos a seguir uma voz que é uma ilusão, definimo-nos por tudo e por nada, pelo emprego que temos, pelas coisas que possuímos, pelo que as outras pessoas pensam de nós, pelas expetativas que colocam em nós e que nós mesmos colocamos nos outros.

            Estamos reféns de mil e uma coisa que tentam captar a nossa atenção que nem nos apercebemos que estamos dormentes e em piloto automático, os estímulos são tantos que deixamos de sentir, e o que é mais importante do que o momento presente? Nada.

            Existimos em incontáveis pequenos momentos de tempo que nem conseguimos compreender, mas ficamos com a perceção que somos de certa forma eternos, vivendo nos altos e baixos das memórias passadas, ou afogados nos pensamentos de futuro que apenas são reais para aí um porcento do que realmente serão.

            Estamos viciados em objetivos quando a felicidade real acontece no processo, renegamos o processo e com ele o momento presente, tentamos afastar de nós o sofrimento que a realidade nos impõe e com isso não aceitamos o que é, aqui e agora.

            A nosso eu, é ilusório, é impossível de existir, porque se estamos a pensar conscientemente quem é que existe para ter consciência que estamos a pensar, se tudo existe na consciência não pode haver um espetador passivo da nossa experiência, o que nos identifica e torna ilusórios é os pensamentos, nem é bem os pensamentos em si, pois é impossível detê-los, é a forma como nos identificamos com eles.

            Como o eu é ilusório também o livre arbítrio o é, pois mesmo que temos possibilidade de escolha esta não é livre, depende da nossa biologia, das causas e efeitos das ações dos outros, dependem do ambiente social e cultural que nos envolve. Não dá para escolher porque não sabemos que pensamento vem a seguir, logo a escolha nunca é livre.

            Quando perdemos a sensação de existir como uma identidade fora da realidade, numa perspetiva dualista da existência, separados do que acontece agora e não aceitamos o que acontece a cada momento, ficamos perdidos, zangados, deprimidos, ressentidos, feridos, o ego adora fazer-nos sentir miseráveis pois ele coloca-nos no centro da realidade e a verdade é que não e existe centro nenhum, é tudo uma ilusão.

            A nossa consciência não está dentro da nossa mente, é exterior a ela, logo a voz que nos sussurra ao ouvido e que dá valor a tudo o que somos ou não somos é apenas um reflexo, como num espelho o reflexo não define o espelho, logo os nossos pensamentos nunca poderão determinar a nossa identidade.

            O que somos então? Somos um sistema consciente não dualista que tem um corpo e uma mente e uma consciência que abarca tudo, somos o resultado de milhares de anos de evolução, somos feitos de átomos de matéria, a mesma matéria que permeia o Universo, somos um ser que contra todas as possibilidades fecundou um óvulo e nasceu, muitos outros nunca aqui chegaram. A mesma matéria que nos forma pode já ter existido em outros grandes homens e mulheres do passado, porque no fim, voltamos ao pó ao mesmo pó que nos formou.

            Se nos sentarmos à beira de uma estrada movimentada percebemos que não somos o centro de nada, se pensarmos que dentro de cada carro ou outro veículo está uma pessoa que nem sequer está consciente que existimos, que não faz ideia das nossas batalhas ou vitórias, faz-nos perceber que somos apenas mais um ser a navegar neste mundo.

            O sol não se move à nossa volta. Também podemos olhar o céu e ver as nuvens passarem, ou à beira de um rio e ver a água passar, nunca são as mesmas nuvens nem a mesma água, se observarmos a natureza percebemos que não somos centro de nada, os sistemas naturais acontecem independentemente de existirmos ou não.

            Somos medo, tudo em nós tresanda a medo. Todas as nossas ações são movidas pelo medo.

            Quantas vezes em vez de repousarmos na consciência relaxada da existência criamos novos medos?

            Por exemplo, quando amamos alguém e sabemos que queremos estar com essa pessoa o que fazemos? Vários processos mentais entram na equação, nenhum deles é baseado no presente, no que existe, na realidade, podemos para ajudar a entender o que fazer, realizar o exercício do que é a pior coisa que pode acontecer, vejamos, o pior que pode acontecer é, agarrarmo-nos a memórias passadas, a traumas, ao que sofremos em processos idênticos, lá está mais uma dose de sofrimento para afagar a nossa ilusão de ser. Podemos estabelecer expetativas tão irreais para como deve ser o futuro e como os outros devem ser, e mais uma vez o sofrimento surge, e o ego, gosta tanto disto.

            Ao fazermos isso e em vez de vivermos o presente e aproveitarmos os momentos com as pessoas que gostamos, deixamos que elas se escapem e depois? Depois mais sofrimento porque perdemos uma oportunidade.

            O problema é que não aceitamos a impermanência das coisas, das relações da nossa condição, há apenas duas coisas certas na vida, a mudança e a morte, e ambas são naturais. Ao projetarmos nas pessoas presentes julgamentos de pessoas passadas ou futuras deixamos de ser felizes.

            Logo mil e um medos fazem-nos ser adictos a sofrimento.

            Medo de perda, medo de dor, medo de infelicidade, medo da morte, medo de perder a identidade ilusória, medo de nos perdermos e ficarmos assustados porque não temos propósito ou significado.

            E teremos? Essa busca incessante por significado e propósito ainda traz mais sofrimento e traz vazio e temos medo mais uma vez do vazio e de ser irrelevantes, mas não somos isso? Todos irrelevantes para o grande esquema das coisas?

            O mundo e o Universo continuarão a existir sem mim, vi isso quando perdi alguém querido, o tempo e a vida continuaram, a minha mãe nunca foi minha, foi alguém que tive uma relação interpessoal durante 46 anos mais o tempo no útero, mas agora deixou de existir, não tenho o direito de a manter aqui para egoisticamente me sentir miserável ou mais confortável, ela não me pertencia, tenho de largar, de deixar ir. Voltou ao pó ao mesmo pó que também eu um dia irei. Não sei quando irei e é esse sentido de impermanência que me faz viver, é o medo da morte que nos faz viver, e onde a vida acontece? Aqui e agora.

            Qualquer que seja o objeto mental ou físico que nos apegamos, seja uma obra de arte, uma música ou uma memória, não é mais que algo que nos faz sentir como se fossemos espetadores por detrás da nossa cara, passamos a espetadores num teatro quando deveríamos ser os atores do mesmo, distanciamo-nos da experiência e assim criamos sofrimento.

            O que é positivo ou negativo é subjetivo, logo todas as nossas ações ou pensamentos são subjetivos e ilusórios, pois não existem no vácuo, existem nas interações com o mundo externo que se tomarmos real atenção é o mesmo que o interior, não há separação nem dualismo.

            Há paradoxos filosóficos que fazem algum sentido, mas há um entre muitos que mais uma vez o medo e logo o sofrimento não faz sentido algum. Voltemos ao exemplo de amarmos alguém mas evitarmos por tudo que falei não estar com essa pessoa no processo de crescimento e de vida, depois queixamos-mos da falta de afeto, da solidão, de sermos uma ilha, ora se escolhemos com base no medo algo não nos podemos queixar a seguir que ninguém nos liga e estamos sós e miseráveis.

            A solidão tem os seus méritos e é num caminho solitário que eventualmente chegaremos a um espaço de iluminação que nunca será final, mas que será o mais próximo a que chegaremos, mesmo acompanhados haverá momentos para caminhar sozinhos e se assim escolhermos, mais uma vez sem livre arbítrio mas apenas porque é o resultado do momento, que assim seja, mas não nos queixemos depois do outro tipo de solidão, aquele que pela força do medo negamos, quando amamos e somos amados mas negamos a nós mesmos o amor presente, que é o único que existe, o para sempre não existe e haverá ou não sempre sofrimento, a questão é que é natural e deve ser aceite esse sofrimento, a vida não são só momentos bons, mas todos os momentos mesmo os maus nos fazem crescer e nenhum deles nos mata, e mesmo que matasse é apenas o percurso natural da vida. Deixar de existir. Não há nada a temer se vivermos o presente.

            O Universo é demasiado grande e imensuravelmente vasto para a nossa mente humana o influenciar, por isso a Humanidade criou a religião e o culto porque sejamos honestos, sem o sentido que há algo de sobrenatural a nossa existência torna-se insignificante e isso assusta-nos, todos queremos ter um impacto qualquer, mesmo que esse impacto seja insignificante no grande esquema das coisas.

            Há um espaço e há uma prática que nos pode libertar, a meditação ou a atenção plena (mindfulness) traz-nos essa verdadeira liberdade, a liberdade do eu, podemos chegar a um estado separado do ego, mais uma vez não é uma forma de erradicar pensamentos, é apercebermo-nos deles, vê-los a surgir e a desaparecer como são, sem julgamentos e sem nos identificarmos com eles.

            Tudo já existe, não precisamos acrescentar nada.

            A consciência é a única coisa que não pode ser ilusão.

            Ao meditarmos não estamos a acrescentar nada à nossa experiência, deve ser algo natural, não há dogmas em que acreditar, não há estados transcendentes, é apenas ter atenção ao que surge e aceitarmos como é realmente sem nos apegarmos. Tudo já existe como é e independentemente de nós. Também podemos alcançar esse estado de forma menos natural ao tomarmos drogas alucinogénias e se tivermos sorte de termos uma experiência agradável, mas isto deve ficar ao à consideração de cada um e devemos entender que como outras coisas é só uma porta e dura apenas um momento, como tal teríamos de andar sempre sob influência e sabemos que o abuso de drogas não é bom, logo a outra alternativa é mais saudável e chama-se meditação.

            Uma nova corrente nasce, o realismo espiritual, ou a espiritualidade sem religião, esta segue muitas das tradições budistas e parece o sistema mais interessante de viver uma vida plena.

            Há milénios que no oriente já se sabe isto, mas a cegueira ocidental e o pretensiosismo sempre a renegaram para o obscurantismo, como o ser humano pode ser tão cego e inconsciente é admirável

            Ficar a ruminar pensamentos e acreditar na voz interior incessante é como estarmos a sonhar acordados, a meditação faz-nos acordar.

            Deixo aqui no fim uma analogia como a nossa mente pode ser enganadora. A sensação que sentimos por vezes a fazer exercício físico é um bocado dolorosa, mas a nossa mente dá um significado bom porque é algo que identificamos como bom, viver com esse desconforto diariamente seria impossível, mas se essa dor surgir fora do exercício o que a mente nos diz? Que possivelmente temos uma doença má e que temos de fazer exame e um infinito chorrilho de pensamentos maus.

            Se aceitarmos uma dor ou um prazer como sendo neutro e sendo o que ele é, apercebemo-nos que são ambas as situações justificáveis de sentir, no final a dor pode nem ser doença nenhuma, só com exames se verá e no momento não o podemos fazer, mais uma vez, devemos concentrar-nos no processo e não no resultado.

            Tentei fazer isto com este texto, mais que o mostrar e publicar, o processo durou mais de uma semana e fui acrescentando e apagando coisas conforme a minha experiência com a meditação se foi alterando e foi muito bom viver cada dia da criação do mesmo.

            Nada de transcendental eu escrevi aqui e com isto não digo que seja superior a ninguém, escrevo na terceira pessoa e incluo-me na totalidade do ser humano.

 

Bruno Carvalho

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