Somos
todos uns adictos a sofrimento.
Pode parecer uma afirmação meio
radical e agressiva, mas exploremos este assunto.
O nosso nível de apego a coisas e
momentos, a objetos dentro da nossa consciência é infinito, apegamo-nos aos picos,
altos ou baixos da nossa vida, sendo os baixos maus e a estes damos uma
importância extrema, aos picos altos e bons porque neste momento são apenas
memórias passadas e como as lembramos no presente tornam-se más também porque
são momentos que tivemos que agora não temos.
O nosso ego e a voz interior regem a
nossa vida, somos como autómatos a seguir uma voz que é uma ilusão,
definimo-nos por tudo e por nada, pelo emprego que temos, pelas coisas que
possuímos, pelo que as outras pessoas pensam de nós, pelas expetativas que
colocam em nós e que nós mesmos colocamos nos outros.
Estamos reféns de mil e uma coisa
que tentam captar a nossa atenção que nem nos apercebemos que estamos dormentes
e em piloto automático, os estímulos são tantos que deixamos de sentir, e o que
é mais importante do que o momento presente? Nada.
Existimos em incontáveis pequenos
momentos de tempo que nem conseguimos compreender, mas ficamos com a perceção
que somos de certa forma eternos, vivendo nos altos e baixos das memórias
passadas, ou afogados nos pensamentos de futuro que apenas são reais para aí um
porcento do que realmente serão.
Estamos viciados em objetivos quando
a felicidade real acontece no processo, renegamos o processo e com ele o
momento presente, tentamos afastar de nós o sofrimento que a realidade nos
impõe e com isso não aceitamos o que é, aqui e agora.
A nosso eu, é ilusório, é impossível
de existir, porque se estamos a pensar conscientemente quem é que existe para
ter consciência que estamos a pensar, se tudo existe na consciência não pode
haver um espetador passivo da nossa experiência, o que nos identifica e torna
ilusórios é os pensamentos, nem é bem os pensamentos em si, pois é impossível
detê-los, é a forma como nos identificamos com eles.
Como o eu é ilusório também o livre
arbítrio o é, pois mesmo que temos possibilidade de escolha esta não é livre,
depende da nossa biologia, das causas e efeitos das ações dos outros, dependem
do ambiente social e cultural que nos envolve. Não dá para escolher porque não
sabemos que pensamento vem a seguir, logo a escolha nunca é livre.
Quando perdemos a sensação de
existir como uma identidade fora da realidade, numa perspetiva dualista da
existência, separados do que acontece agora e não aceitamos o que acontece a
cada momento, ficamos perdidos, zangados, deprimidos, ressentidos, feridos, o
ego adora fazer-nos sentir miseráveis pois ele coloca-nos no centro da
realidade e a verdade é que não e existe centro nenhum, é tudo uma ilusão.
A nossa consciência não está dentro
da nossa mente, é exterior a ela, logo a voz que nos sussurra ao ouvido e que
dá valor a tudo o que somos ou não somos é apenas um reflexo, como num espelho
o reflexo não define o espelho, logo os nossos pensamentos nunca poderão
determinar a nossa identidade.
O que somos então? Somos um sistema
consciente não dualista que tem um corpo e uma mente e uma consciência que
abarca tudo, somos o resultado de milhares de anos de evolução, somos feitos de
átomos de matéria, a mesma matéria que permeia o Universo, somos um ser que
contra todas as possibilidades fecundou um óvulo e nasceu, muitos outros nunca
aqui chegaram. A mesma matéria que nos forma pode já ter existido em outros
grandes homens e mulheres do passado, porque no fim, voltamos ao pó ao mesmo pó
que nos formou.
Se nos sentarmos à beira de uma
estrada movimentada percebemos que não somos o centro de nada, se pensarmos que
dentro de cada carro ou outro veículo está uma pessoa que nem sequer está
consciente que existimos, que não faz ideia das nossas batalhas ou vitórias,
faz-nos perceber que somos apenas mais um ser a navegar neste mundo.
O sol não se move à nossa volta.
Também podemos olhar o céu e ver as nuvens passarem, ou à beira de um rio e ver
a água passar, nunca são as mesmas nuvens nem a mesma água, se observarmos a
natureza percebemos que não somos centro de nada, os sistemas naturais
acontecem independentemente de existirmos ou não.
Somos medo, tudo em nós tresanda a
medo. Todas as nossas ações são movidas pelo medo.
Quantas vezes em vez de repousarmos
na consciência relaxada da existência criamos novos medos?
Por exemplo, quando amamos alguém e
sabemos que queremos estar com essa pessoa o que fazemos? Vários processos
mentais entram na equação, nenhum deles é baseado no presente, no que existe,
na realidade, podemos para ajudar a entender o que fazer, realizar o exercício
do que é a pior coisa que pode acontecer, vejamos, o pior que pode acontecer é,
agarrarmo-nos a memórias passadas, a traumas, ao que sofremos em processos
idênticos, lá está mais uma dose de sofrimento para afagar a nossa ilusão de
ser. Podemos estabelecer expetativas tão irreais para como deve ser o futuro e
como os outros devem ser, e mais uma vez o sofrimento surge, e o ego, gosta
tanto disto.
Ao fazermos isso e em vez de
vivermos o presente e aproveitarmos os momentos com as pessoas que gostamos,
deixamos que elas se escapem e depois? Depois mais sofrimento porque perdemos
uma oportunidade.
O problema é que não aceitamos a
impermanência das coisas, das relações da nossa condição, há apenas duas coisas
certas na vida, a mudança e a morte, e ambas são naturais. Ao projetarmos nas
pessoas presentes julgamentos de pessoas passadas ou futuras deixamos de ser
felizes.
Logo mil e um medos fazem-nos ser
adictos a sofrimento.
Medo de perda, medo de dor, medo de
infelicidade, medo da morte, medo de perder a identidade ilusória, medo de nos
perdermos e ficarmos assustados porque não temos propósito ou significado.
E teremos? Essa busca incessante por
significado e propósito ainda traz mais sofrimento e traz vazio e temos medo
mais uma vez do vazio e de ser irrelevantes, mas não somos isso? Todos
irrelevantes para o grande esquema das coisas?
O mundo e o Universo continuarão a
existir sem mim, vi isso quando perdi alguém querido, o tempo e a vida
continuaram, a minha mãe nunca foi minha, foi alguém que tive uma relação
interpessoal durante 46 anos mais o tempo no útero, mas agora deixou de existir,
não tenho o direito de a manter aqui para egoisticamente me sentir miserável ou
mais confortável, ela não me pertencia, tenho de largar, de deixar ir. Voltou
ao pó ao mesmo pó que também eu um dia irei. Não sei quando irei e é esse
sentido de impermanência que me faz viver, é o medo da morte que nos faz viver,
e onde a vida acontece? Aqui e agora.
Qualquer que seja o objeto mental ou
físico que nos apegamos, seja uma obra de arte, uma música ou uma memória, não
é mais que algo que nos faz sentir como se fossemos espetadores por detrás da
nossa cara, passamos a espetadores num teatro quando deveríamos ser os atores
do mesmo, distanciamo-nos da experiência e assim criamos sofrimento.
O que é positivo ou negativo é
subjetivo, logo todas as nossas ações ou pensamentos são subjetivos e
ilusórios, pois não existem no vácuo, existem nas interações com o mundo
externo que se tomarmos real atenção é o mesmo que o interior, não há separação
nem dualismo.
Há paradoxos filosóficos que fazem
algum sentido, mas há um entre muitos que mais uma vez o medo e logo o
sofrimento não faz sentido algum. Voltemos ao exemplo de amarmos alguém mas
evitarmos por tudo que falei não estar com essa pessoa no processo de
crescimento e de vida, depois queixamos-mos da falta de afeto, da solidão, de sermos
uma ilha, ora se escolhemos com base no medo algo não nos podemos queixar a
seguir que ninguém nos liga e estamos sós e miseráveis.
A solidão tem os seus méritos e é
num caminho solitário que eventualmente chegaremos a um espaço de iluminação
que nunca será final, mas que será o mais próximo a que chegaremos, mesmo
acompanhados haverá momentos para caminhar sozinhos e se assim escolhermos,
mais uma vez sem livre arbítrio mas apenas porque é o resultado do momento, que
assim seja, mas não nos queixemos depois do outro tipo de solidão, aquele que
pela força do medo negamos, quando amamos e somos amados mas negamos a nós
mesmos o amor presente, que é o único que existe, o para sempre não existe e
haverá ou não sempre sofrimento, a questão é que é natural e deve ser aceite
esse sofrimento, a vida não são só momentos bons, mas todos os momentos mesmo
os maus nos fazem crescer e nenhum deles nos mata, e mesmo que matasse é apenas
o percurso natural da vida. Deixar de existir. Não há nada a temer se vivermos
o presente.
O Universo é demasiado grande e
imensuravelmente vasto para a nossa mente humana o influenciar, por isso a
Humanidade criou a religião e o culto porque sejamos honestos, sem o sentido
que há algo de sobrenatural a nossa existência torna-se insignificante e isso
assusta-nos, todos queremos ter um impacto qualquer, mesmo que esse impacto
seja insignificante no grande esquema das coisas.
Há um espaço e há uma prática que
nos pode libertar, a meditação ou a atenção plena (mindfulness) traz-nos essa
verdadeira liberdade, a liberdade do eu, podemos chegar a um estado separado do
ego, mais uma vez não é uma forma de erradicar pensamentos, é apercebermo-nos
deles, vê-los a surgir e a desaparecer como são, sem julgamentos e sem nos
identificarmos com eles.
Tudo já existe, não precisamos
acrescentar nada.
A consciência é a única coisa que
não pode ser ilusão.
Ao meditarmos não estamos a
acrescentar nada à nossa experiência, deve ser algo natural, não há dogmas em
que acreditar, não há estados transcendentes, é apenas ter atenção ao que surge
e aceitarmos como é realmente sem nos apegarmos. Tudo já existe como é e
independentemente de nós. Também podemos alcançar esse estado de forma menos
natural ao tomarmos drogas alucinogénias e se tivermos sorte de termos uma
experiência agradável, mas isto deve ficar ao à consideração de cada um e
devemos entender que como outras coisas é só uma porta e dura apenas um
momento, como tal teríamos de andar sempre sob influência e sabemos que o abuso
de drogas não é bom, logo a outra alternativa é mais saudável e chama-se
meditação.
Uma nova corrente nasce, o realismo
espiritual, ou a espiritualidade sem religião, esta segue muitas das tradições
budistas e parece o sistema mais interessante de viver uma vida plena.
Há
milénios que no oriente já se sabe isto, mas a cegueira ocidental e o
pretensiosismo sempre a renegaram para o obscurantismo, como o ser humano pode
ser tão cego e inconsciente é admirável
Ficar a ruminar pensamentos e
acreditar na voz interior incessante é como estarmos a sonhar acordados, a
meditação faz-nos acordar.
Deixo aqui no fim uma analogia como
a nossa mente pode ser enganadora. A sensação que sentimos por vezes a fazer
exercício físico é um bocado dolorosa, mas a nossa mente dá um significado bom
porque é algo que identificamos como bom, viver com esse desconforto
diariamente seria impossível, mas se essa dor surgir fora do exercício o que a
mente nos diz? Que possivelmente temos uma doença má e que temos de fazer exame
e um infinito chorrilho de pensamentos maus.
Se aceitarmos uma dor ou um prazer
como sendo neutro e sendo o que ele é, apercebemo-nos que são ambas as
situações justificáveis de sentir, no final a dor pode nem ser doença nenhuma,
só com exames se verá e no momento não o podemos fazer, mais uma vez, devemos
concentrar-nos no processo e não no resultado.
Tentei fazer isto com este texto,
mais que o mostrar e publicar, o processo durou mais de uma semana e fui
acrescentando e apagando coisas conforme a minha experiência com a meditação se
foi alterando e foi muito bom viver cada dia da criação do mesmo.
Nada de transcendental eu escrevi
aqui e com isto não digo que seja superior a ninguém, escrevo na terceira
pessoa e incluo-me na totalidade do ser humano.
Bruno
Carvalho
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